“Tá a fim de diversão hoje?”, perguntou Bruno dos Santos Menezes, o Zoio de Gato, na manhã de 27 de agosto de 2021. “Meu coração até acelerou aqui”, respondeu seu comparsa. Menezes, gerente do tráfico de drogas no bairro Valéria, na periferia de Salvador, explicou o plano: na madrugada seguinte, a facção que ambos integravam se juntaria a outro grupo aliado para atacar uma terceira quadrilha, que tentava invadir a região. Do outro lado da linha, o interlocutor topou a empreitada, mas perguntou se a quadrilha tinha armas suficientes. “Vai sobrar peça”, garantiu Menezes.
A conversa, descrita num relatório da Polícia Civil do estado a que o GLOBO teve acesso, escancara a fragmentação do crime organizado que transformou a Bahia num campo minado de facções. Um levantamento feito pelo jornal em processos do Tribunal de Justiça local (TJBA) revela que, atualmente, pelo menos dez facções criminosas disputam território em pontos da capital, na Região Metropolitana e em cidades do interior — um cenário que não tem paralelo em nenhum outro estado.
Em Valéria, a guerra entre as três facções e a polícia perdura até hoje e está longe de um fim. No dia em que a ligação entre Zoio e seu comparsa foi interceptada, os tiroteios atravessaram a madrugada e seguiram até a tarde do dia seguinte. Um ano depois, Zoio foi morto num confronto com a Polícia Civil no bairro, considerado estratégico pelo tráfico por sua localização privilegiada, às margens da BR-324, principal via de acesso à capital baiana. Já no último dia 15, o policial federal Lucas Caribé foi assassinado, em meio a uma operação, por traficantes que tentavam invadir a região. Desde então, 14 suspeitos foram mortos em ações da polícia.
Apenas em setembro, foram contabilizadas mais de 60 mortes em confrontos policiais no estado, mas a contagem é extraoficial, e os números podem ser muito maiores. Para se ter ideia, a média de 2022 foi da ordem de 122 pessoas mortas pela polícia ao mês.
A guerra sem trégua em Valéria expõe a incapacidade do estado de enfrentar a fragmentação do crime organizado na Bahia. O emaranhado de rixas, alianças e rupturas de facções levou a Bahia ao topo do ranking de mortes violentas. Em 2019, o estado superou o Rio e, desde então, tem o maior número de assassinatos do país em números absolutos. No ano passado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registradas 6.659 mortes violentas, média de 18 por dia.
Para o sociólogo Antonio Lima, autor do livro “Rotas Alteradas”, sobre o crime organizado na Bahia, o processo de fragmentação das facções tem relação direta com a política de segurança do estado, governado pelo PT há mais de 16 anos.
— Quando a polícia faz uma operação numa favela e mata um traficante, o governo acredita que está pacificando a região. Na verdade, essa política só aperta um gatilho para que a violência aconteça com maior intensidade. No crime, não existe vácuo: mortes geram conflitos sucessionais violentos, que por sua vez alimentam ciclos de retaliações e resultam no quadro a que assistimos hoje — afirma Lima.
Desde 2019, homicídios em operações policiais não param de crescer na Bahia. No ano passado, 1.464 pessoas foram mortas pela polícia baiana, que se tornou a mais letal do país, superando a fluminense.
Localização estratégica
Oito das facções que disputam territórios na Bahia foram fundadas no próprio estado — sendo que quatro surgiram na última década. Já as outras duas vieram de fora e replicaram, nas periferias baianas, o conflito nacional que travam desde 2016: tanto o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, quanto o Comando Vermelho (CV), do Rio, passaram a impulsionar, a partir do fornecimento de armas e drogas, disputas entre os grupos locais.
As duas maiores facções do país intensificaram sua atuação na Bahia depois da execução do traficante Jorge Rafaat, o Rei da Fronteira, em Mato Grosso do Sul, em junho de 2016. O crime, cometido por mercenários a mando dos paulistas, culminou no rompimento entre os grupos — desencadeando uma disputa por rotas e mercados de drogas. Quarto estado mais populoso e importante entreposto do tráfico internacional — só em 2020, foram apreendidas mais de oito toneladas de cocaína no Porto de Salvador com destino à Europa —, a Bahia virou objeto de desejo dos rivais.
O PCC passou a patrocinar guerras expansionistas do grupo baiano mais violento e ambicioso. Fundada pelo ladrão de bancos José Francisco Lumes, o Zé de Lessa, morto em 2019, a facção expandiu suas atividades para o tráfico e, impulsionada pela parceria, já é considerada a maior da Bahia. Nos últimos anos, o bando foi o responsável pela invasão de vários bairros de Salvador, como Sussuarana e Engenho Velho de Brotas, além de Valéria.
Já o CV, inicialmente, fechou uma parceria com a facção mais antiga da Bahia, nascida no sistema penitenciário para mediar brigas entre presos nos anos 2000. Antes hegemônico, o grupo perdeu espaço devido a disputas internas que deram origem a outras facções. Nos últimos anos, os cariocas também passaram a fornecer apoio logístico a outros bandos que resistem ao PCC. Se em outros estados, como o Amazonas, a disputa entre paulistas e cariocas levou à formação de dois polos na cena criminal; na Bahia, o conflito não impediu a proliferação de facções regionais.
Um cenário que fez de Jequié, a 365km de Salvador, a cidade mais violenta do país, com uma taxa de 88,8 mortes por 100 mil habitantes. Em meados de 2022, Sandro Santos Queiroz, o Real, apontado como maior chefe de tráfico do sudoeste baiano, traiu sua antiga facção — o grupo aliado ao PCC — e se aliou ao bando rival. De dentro do presídio local, seus ex-comparsas ordenaram uma caçada a Real que levou um banho de sangue às ruas da cidade de 158 mil habitantes. Segundo a Polícia Civil, 92 dos 101 homicídios registrados em Jequié em 2022 têm ligação com a guerra.
A rivalidade é tanta que os moradores não podem sequer frequentar territórios sob controle dos rivais. Essa é a principal linha de investigação do assassinato de João Vitor Silva Dantas, de 21 anos. O jovem desapareceu em julho, após sair para visitar sua namorada, que vivia numa parte da cidade dominada por um grupo diferente ao do seu bairro. Três dias depois, o corpo do rapaz foi encontrado, com marcas de tiro, boiando num rio.
— Meu filho era um menino correto, não tinha envolvimento com crime. Todos os dias me pergunto por que mataram ele. Não consigo entender — diz a mãe de João Vitor, a doméstica Juliana de Jesus, de 40 anos. No início do mês passado, mães de vítimas da violência denunciaram, na Câmara de Jequié, casos de truculência em abordagens policiais desde que a crise na segurança do município se agravou.
Questionado sobre a estratégia de combate às facções, o governo da Bahia não respondeu ao GLOBO. Na semana passada, o governador Jerônimo Rodrigues (PT) defendeu sua política de segurança.
— Em momento algum, determinei que trouxessem corpos de criminosos, de policiais ou de inocentes. Mas temos que ter a firmeza de ir lá e fazer operações — afirmou.
Fonte: O Globo